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Carrancas na paisagem cultural do São Francisco

Carrancas na paisagem cultural do São Francisco

13/05/2017 Paulo Henrique Martinez

As carrancas são filhas do contexto artístico e social que as fez nascer e multiplicar.

A presença das carrancas, distintas figuras de proa nas barcas que navegaram os rios do vale do São Francisco, na primeira metade do século XX, é central na compreensão da paisagem cultural daquela região.

Nas margens do rio Corrente, afluente do São Francisco, no oeste da Bahia, Francisco Biquiba Guarany (1884-1985), notabilizou-se como mestre carranqueiro. Foi grande a expressividade tanto plástica, em robustas madeiras da região, como o cedro, quanto numérica, das peças que produziu ao longo de toda a sua vida.

Estima-se que ele entalhou ao redor de uma centena de carrancas para uso em embarcações e a decoração de interiores. O catálogo da exposição “Guarany: 80 anos de carrancas”, patrocinada pela Fundação Roberto Marinho, em 1981, reuniu informações, imagens e textos de Clarival do Prado Valladares e de Paulo Pardal, estudiosos das carrancas do São Francisco.

Devemos a eles o sistemático trabalho de registro, investigação, análises e difusão da arte das carrancas e de seu universo sócio-cultural. As interpretações que construíram sobre a existência das carrancas esteve profundamente marcada pelo contexto de valorização da cultura popular na década de 1970.

A ditadura militar estimulou a localização e a divulgação de artistas populares, em aberta tentativa de suprimir o diálogo crescente entre arte e contestação política que marcara a vida nacional na década de 1960. Foi nestes anos que as carrancas de Guarany ganharam grande visibilidade pública na mídia e em espaços culturais dentro e fora do Brasil.

Havia nesta orientação governamental nítida dimensão política, explicitada em muitos estudos. O historiador Antonio Gilberto Ramos Nogueira, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará, destaca que sob os militares se procurou conferir novo lugar à cultura do povo no desenvolvimento econômico e na identidade nacional, impregnada de ufanismo.

Esta política logo valeu-se de novas concepções de patrimônio cultural – centrado na valorização da memória individual e coletiva – e de suas práticas de conservação, amparadas nas novas tecnologias de então, como registros audiovisuais, entrevistas e questionários.

O objetivo era o fortalecimento de identidades regionais pela identificação, inventário, divulgação e funcionamento de instituições dedicadas à cultura popular brasileira. A promoção oficial recairia não apenas sobre os bens culturais, mas, sobretudo, em processos de criação e de confeccção dos mesmos.

Ganhariam destaque a eficácia dos conhecimentos tradicionais dos artífices, as práticas ancestrais, aprimoradas empíricamente, em contato com a natureza e a memória oral de experientes mestres-artesãos, e os diversificados materiais e suportes, como palha, madeira, argila, couro, tintas, tecido, sonoridades, plantas e alimentos.

O risco de desaparição das técnicas e saberes, da perda de ambientes, ferramentas e instrumentos, completava o interesse pela memória e a cultura popular. As carrancas, a vida e a obra de carranqueiros e a de Guarany, em particular, tornaram-se objeto de estudo e apreço.

Os textos de Clarival Valladares e de Paulo Pardal traduziram o espírito de busca pela arte e a cultura popular e também o esforço de apreender o fenômeno das carrancas sob o nacionalismo da noção de patrimônio cultural animada sob a ditadura militar.

O alcance social desta orientação na política federal de cultura foi amplo e profundo. Inegavelmente, sob as concepções e valores atribuídos ao patrimônio cultural naqueles anos, outras ações sobre a paisagem cultural do vale do São Francisco podem ser observadas.

O mundo mítico-rural que gravita nas margens do grande rio e sua evocação como metáfora-síntese do Brasil são frequentes em nossa criação cultural. A reedição, em 1976, do romance Porto Calendário, de Osório Alves de Castro (1901-1978), e a pintura de Jairo Rodrigues da Silva (1958), são emblemáticas.

Ambos são de Santa Maria da Vitória, Bahia, cidade em que nasceu e viveu Guarany. Os livros de Osório abordam o universo histórico-social do vale do rio Corrente, no qual se situa a cidade, tributária da vida econômica do São Francisco.

As pinturas de Jairo Rodrigues da Silva surgem, no início dos anos 1980, sob o estímulo figurativo da natureza, de portos, barcas, rios e da gente ribeirinha. Em 2015, nova exposição no eixo Rio-São Paulo – A viagem das carrancas – recolocou em evidência as águas, a terra e o povo de lá.

Recente e de alcance nacional foi também a projeção daquela paisagem cultural na telenovela Velho Chico, examinada com argúcia pela professora Silvia Adoue (Unesp Ciência, setembro/2016). Estudos históricos e sociais sobre o vale do São Francisco têm realçado a secular presença negra na região.

Nas últimas décadas, a política de demarcação de áreas remanescentes de quilombos reiterou esta longeva peculiaridade demográfica, étnica e cultural. Para além da doutrinação ideológica, patriótica e de mercado, as carrancas são filhas do contexto artístico e social que as fez nascer e multiplicar.

Um singular encontro entre artesanato rural e economia mercantil, mais do que homens e mitos, é que aguarda ser desvendado pela pesquisa histórica.

* Paulo Henrique Martinez é professor na Universidade Estadual Paulista, Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis.



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