Portal O Debate
Grupo WhatsApp

A esperança não é a última que morre

A esperança não é a última que morre

08/11/2017 Cicero Urban

A esperança, então, não é a última que morre. Ao contrário, é a falta dela.

Kierkegaard dizia que “quando a morte é o maior perigo, se espera na vida, mas quando nos vemos diante de um perigo ainda maior, se espera na morte. Quando este perigo é tão grande que a morte se torna uma esperança, o desespero é a desesperança de não poder nem mesmo morrer”.

É exatamente este o enredo triste a que o mundo todo assistiu no caso de Charlie Gard, portador de uma síndrome genética raríssima – miopatia mitocondrial provocada por uma depleção no gene RRM2B – que provoca perda progressiva da força muscular e danos cerebrais irreversíveis.

A Justiça britânica determinou a transferência do bebê a uma clínica, onde os aparelhos de ventilação seriam desligados; no dia seguinte, a família confirmou a morte de Charlie. Infelizmente, atrás desta situação humana dramática, existe uma série de questionamentos bioéticos, e que começaram quando a família quis levar o pequeno Charlie para os Estados Unidos, na busca de um tratamento experimental.

É lícito e desejável que se busquem tratamentos experimentais em situações extremas, porém também é fato que existem limites clínicos impostos pelas condições do paciente e pelas evidências científicas. E isto foi colocado pela equipe médica. Questões delicadas sobre a irreversibilidade do quadro e sobre prologar o sofrimento de maneira desnecessária entraram em conflito, aqui, com a autonomia dos pais em decidir sobre o destino do filho.

É frequente a esperança de um milagre por parte dos familiares e pacientes, mas esta questão não é passível de ser dimensionada nas decisões clínicas. Tanto que os pais, resignados, retiraram o apelo às autoridades judiciais britânicas para transferir o filho. Chris e Connie tentaram, em vão, levar Charlie para casa para que ele pudesse morrer em paz.

A gravidade e a irreversibilidade da condição clínica a que chegou o menino nos levam a refletir sobre os valores envolvidos e se, de fato, as condutas que foram sendo tomadas são proporcionais ao caso em questão. Sim, porque o grande problema que necessita ser respondido aqui, tanto em ciência quanto em consciência, é a questão da proporcionalidade terapêutica.

Tratamentos desproporcionais levam ao que nós denominamos de futilidade ou obstinação terapêutica. Ou seja, tratamentos inúteis ou desnecessários e que trazem apenas mais sofrimento ao sofrimento. A retirada de maneira voluntária e direta de aparelhos que sustentam a vida de pacientes, por outro lado, pode ser considerada como eutanásia, quando o objetivo é de abreviar a vida e o alívio do sofrimento.

Deixar a doença seguir sua evolução natural, com a morte acontecendo naturalmente, é ortotanásia, ou seja, a morte no tempo certo. Autorizar os pais a levar seu filho para casa, então, seria eutanásia ou ortotanásia? Zygmunt Bauman coloca que os nossos são tempos de ambivalência moral. O pluralismo das normas nos oferece uma liberdade de escolha jamais gozada antes, mas também nos lança em um estado de incerteza que jamais foi tão angustiante.

Ansiamos por um guia em que possamos confiar, mas nenhuma autoridade – religião ou Estado – é poderosa o bastante para nos oferecer a segurança necessária. E, se de fato existir uma solução para o enigma de um código de ética ou um valor que possa ser considerado como universal, ele seria baseado na natureza humana. Esta natureza, para Bauman, é o próprio potencial humano, o potencial não realizado.

Nossa missão, assim, seria harmonizar a realidade humana com a sua natureza. As pessoas, neste modelo, não devem fazer o mal aos outros, porque está em seu próprio interesse. É como se a liberdade de julgar e escolher necessitasse de uma força externa que leve a pessoa a fazer o bem para sua própria salvação.

Viktor Frankl, psiquiatra austríaco, passou por campos de concentração nazistas (a mãe, a esposa e o irmão foram assassinados em Auschwitz), onde encontrou sua tese central sobre o sentido da vida, do sofrimento e da psicologia humana. Ele dizia que “tudo poderia ser retirado do homem, menos uma última coisa, a última das liberdades humanas – escolher sua atitude em qualquer circunstância, escolher o próprio caminho”.

E que “o homem, por força de sua dimensão espiritual, pode encontrar sentido em cada situação da vida e dar uma resposta adequada”. Mas talvez sua teoria mais interessante, e que possa ser aplicada aqui neste caso, seja a da desesperança. Ela é colocada por ele em termos de uma equação matemática: D=S-P. Ou seja, desesperança é igual sofrimento menos ausência de propósito.

A equipe médica e a corte britânica agiram corretamente? A sequência de fatos que culminou com o desligamento dos aparelhos é um mal necessário ou um bem neste caso? O direito à autodeterminação, à autonomia, pode ser superior às evidências científicas que demonstram que determinados tratamentos são desnecessários ou mesmo danosos?

Seria melhor para Charlie ter seus aparelhos desligados com a supervisão médica, em ambiente controlado, ou em casa, sem a devida assistência? O princípio da proporcionalidade terapêutica, dentro do que foi apresentado na mídia, parece ter sido respeitado aqui. O deslocamento para um tratamento experimental só seria justificável se o quadro clínico fosse compatível com uma expectativa de melhora.

O desligamento dos aparelhos em um ambiente inadequado e desassistido pode gerar mais desconforto e dor. Por fim, não é eutanásia desligar os aparelhos neste caso. É ortotanásia. É deixar a doença seguir seu curso natural, e não prolongar o sofrimento de maneira desnecessária. A esperança, então, não é a última que morre.

Ao contrário, é a falta dela. A ausência de propósito, em um sofrimento prolongado e irreversível de um ser humano inocente. Uma vida breve e que deixou uma dolorosa pergunta sem resposta. Talvez a central da nossa frágil existência humana, a fundamentação não fundada que carregamos no nosso espírito. A do sofrimento sem sentido.

* Cicero Urban é médico oncologista e mastologista, vice-presidente do Instituto Ciência e Fé e coordenador acadêmico do curso de Medicina da Universidade Positivo.



Para escolher o melhor

Tomar boas decisões em um mundo veloz e competitivo como o de hoje é uma necessidade inegável.

Autor: Janguiê Diniz


A desconstrução do mundo

Quando saí do Brasil para morar no exterior, eu sabia que muita coisa iria mudar: mais uma língua, outros costumes, novas paisagens.

Autor: João Filipe da Mata


Por nova (e justa) distribuição tributária

Do bolo dos impostos arrecadados no País, 68% vão para a União, 24% para os Estados e apenas 18% para os municípios.

Autor: Tenente Dirceu Cardoso Gonçalves


Um debate desastroso e a dúvida Biden

Com a proximidade das eleições presidenciais nos Estados Unidos, marcadas para novembro deste ano, realizou-se, na última semana, o primeiro debate entre os pleiteantes de 2024 à Casa Branca: Donald Trump e Joe Biden.

Autor: João Alfredo Lopes Nyegray


Aquiles e seu calcanhar

O mito do herói grego Aquiles adentrou nosso imaginário e nossa nomenclatura médica: o tendão que se insere em nosso calcanhar foi chamado de tendão de Aquiles em homenagem a esse herói.

Autor: Marco Antonio Spinelli


Falta aos brasileiros a sede de verdade

Sigmund Freud (1856-1939), o famoso psicanalista austríaco, escreveu: “As massas nunca tiveram sede de verdade. Elas querem ilusões e nem sabem viver sem elas”.

Autor: Samuel Hanan


Uma batalha política como a de Caim e Abel

Em meio ao turbilhão global, o caos e a desordem só aumentam, e o Juiz Universal está preparando o lançamento da grande colheita da humanidade.

Autor: Benedicto Ismael Camargo Dutra


De olho na alta e/ou criação de impostos

Trava-se, no Congresso Nacional, a grande batalha tributária, embutida na reforma que realinhou, deu nova nomenclatura aos impostos e agora busca enquadrar os produtos ao apetite do fisco e do governo.

Autor: Tenente Dirceu Cardoso Gonçalves


O Pronto Atendimento e o desafio do acolhimento na saúde

O trabalho dentro de um hospital é complexo devido a diversas camadas de atendimento que são necessárias para abranger as necessidades de todos os pacientes.

Autor: José Arthur Brasil


Como melhorar a segurança na movimentação de cargas na construção civil?

O setor da construção civil é um dos mais importantes para a economia do país e tem impacto direto na geração de empregos.

Autor: Fernando Fuertes


As restrições eleitorais contra uso da máquina pública

Estamos em contagem regressiva. As eleições municipais de 2024 ocorrerão no dia 6 de outubro, em todas as cidades do país.

Autor: Wilson Pedroso


Filosofia na calçada

As cidades do interior de Minas, e penso que de outros estados também, nos proporcionam oportunidades de conviver com as pessoas em muitas situações comuns que, no entanto, revelam suas características e personalidades.

Autor: Antônio Marcos Ferreira