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Grau de maturidade sociopolítica e democracia

Grau de maturidade sociopolítica e democracia

17/08/2024 Reis Friede

Cada vez mais doutrinadores têm defendido a tese segundo a qual a democracia e o chamado regime democrático constituem-se muito mais acertadamente em uma “resultante estrutural dialética”.

Relativamente a um “processo histórico-factual” de uma sociedade (em seu contexto político-ideológico), do que propriamente em um modelo concepcional de regime político que, nesta caracterização, poderia ser implantado, aleatoriamente, conforme o eventual desejo formal manifestado pelo povo ou pela classe ou grupo governante.

Nessa direção, a liberdade individual, na qualidade de um dos pilares fundamentais do regime democrático, estaria muito mais associada ao grau de maturidade sociopolítica (nível de conscientização popular) de uma coletividade organizada e, portanto, do patamar civilizatório alcançado por uma sociedade em seu desenvolvimento histórico-político, do que condicionado à simples vontade manifestada por qualquer instrumento formalizante de índole político-jurídica que se proponha a implantar (artificialmente) uma democracia, como, por exemplo, a Assembleia Nacional Constituinte.

“A legitimidade das leis depende de sua harmonia com as concepções éticas dominantes da sociedade. Os imperativos da legislação em desarmonia com o núcleo das concepções éticas de uma Nação não constituem autênticos imperativos jurídicos. Vicejam à margem do Direito, como infecção no organismo nacional.” (GOFFREDO TELLES JUNIOR; Estudos, Saraiva, 2005)

Em outras palavras, segundo essa nova orientação doutrinária, simplesmente não seria viável a efetiva implantação do verdadeiro regime democrático em Estados cujos cidadãos ainda não tenham logrado atingir as condições mínimas de convivência ética e moral, até porque não é possível ultrapassar, por simples manifestação unilateral (ou mesmo grupal) de vontade, estágios naturais de desenvolvimento civilizatório e, igualmente, suprimir pressupostos básicos de amadurecimento social que, necessariamente, envolvem não somente um processo educacional complexo, mas, acima de tudo, fatores históricos genuinamente revolucionários que tenham marcado uma sociedade, permitindo a sua indispensável reflexão coletiva.

“Neste sentido, TOM DWYER, conhecido sociólogo neozelandês radicado no Brasil, salienta, com mérita propriedade, que a pobreza ou mesmo as desigualdades sociais não são, por si só, suficientes para explicar o fenômeno da violência e da desordem urbana em situações de momentânea ausência (ou impotência) do Estado, citando, exemplificativamente, por um lado, o comportamento exemplar dos cidadãos norte-americanos residentes em Nova York durante o apagão de 1965, ou dos países asiáticos atingidos pela tsunami de 2004, em contraposição crítica à situação caótica no Iraque (ocupado, libertado e supostamente democratizado) de 2005, ou o permanente clima de pré-guerra civil existente no Rio de Janeiro ou mesmo a degradação social observada nos três estados mais atrasados dos EUA (Mississipi, Louisiana e Alabama) durante a devastação do furacão Katrina em 2005, buscando, por fim, demonstrar onde efetivamente se encontra a parte civilizada da população mundial.” (O Globo, 04/09/2005, p. 39)

Destarte, de acordo com essa linha de pensamento, resta forçoso concluir que todos os países que, hoje, podem ser inequivocamente reputados Estados Democráticos de Direito, - ou seja, cumprindo os requisitos quanto à presença dos atributos e características inerentes às democracias materiais substantivas (democracias verdadeiras), bem como usufruindo a plenitude do Estado Constitucional, associativo quanto aos paradigmas da legitimidade e da legalidade -, passaram, em algum momento histórico, por algum processo político estrutural de grande envergadura que permitiu, em última análise, a institucionalização da verdadeira democracia e do correspondente regime democrático material.

Sob esse prisma analítico, o Reino Unido e a França (em função, respectivamente, da Revolução Gloriosa – 1666/89 e da Revolução Francesa – 1789/99, que transformaram, em última análise, a concepção estrutural da soberania originariamente teocrática em democrática) seriam, hoje, reconhecidas democracias consolidadas, da mesma forma que os Estados Unidos (em decorrência da Guerra de Independência – 1775/83, que permitiu a edição da primeira Constituição escrita do mundo – em vigor desde 1789, e, posteriormente, da Guerra Civil Americana – 1861/65), a Alemanha (em função do Nazismo – 1933/45), a Itália (em função do Fascismo – 1919/43), e a Espanha e Portugal (respectivamente, por consequência dos períodos Franquista – 1939/75 e de SALAZAR – 1932/74), valendo pontuar que a plenitude do regime democrático alemão, a exemplo de todos os demais casos citados, não foi imediatamente instaurada após o fim do regime nazista em 1945.

Muito pelo contrário, a democracia foi lentamente conquistada e consolidada nos anos posteriores ao pós-guerra, até atingir a situação de relativa plenitude nos anos 1970.

Não por outra razão, nos chamados países periféricos e em todos os demais Estados que, por razões políticas e históricas, não experimentaram processo semelhante, a democracia e o regime democrático vigentes têm se traduzido simploriamente em uma forma de organização política fundada restritivamente não apenas em aparentes liberdades (situação em que a normatividade jurídica não possui plena efetividade), mas, particularmente, em verdadeiros “feudos” da era contemporânea, em que o populismo assistencial é a principal tônica governamental (caracterizando o que se convencionou designar por “democracias formais ou aparentes”).

É o caso de praticamente todos os países da América Latina na atualidade, com ênfase no emblemático exemplo da Venezuela de HUGO CHÁVEZ e de seu sucessor, NICOLÁS MADURO. Segundo longa e detalhada análise realizada por DIOGO SCHELP (Rev. Veja, 14/12/2005, ps. 156 e segs.), antes da era CHÁVEZ, o país era controlado por dois partidos da elite venezuelana que por décadas se restringiram a criar uma estrutura estatal perdulária, ineficiente e, sobretudo, corrupta.

Em 1999, eleito através de regras reputadas democráticas, CHÁVEZ assumiu a presidência da República, alterou a Constituição e, com o vertiginoso aumento dos preços internacionais do petróleo, transformou a estatal petrolífera venezuelana, a PDVSA (e os lucros com a venda do petróleo), em uma máquina de comprar apoio político interno (retirando US$ 3,7 bilhões/ano para programas sociais) e internacional (vendendo a preços subsidiados óleo para diversos países latino-americanos), além de estruturar uma milícia armada com aproximadamente 100.000 homens.

Neste cenário, - não obstante as estatísticas de 2005 demonstrarem que a classe média encolheu 57%, o número de pobres aumentou 25%, o desemprego cresceu de 11% para 16%, metade das indústrias fechou, os empregos informais aumentaram 45%, a inflação subiu de 11% para 17% ao ano, o investimento estrangeiro declinou pela metade e a dívida pública dobrou -, CHÁVEZ, no mesmo período, contava com o inconteste apoio de metade dos venezuelanos (a parcela mais pobre, cativada através de políticas assistencialistas), além de ter consolidado o seu poder por meio de plebiscitos em que obteve ampla maioria.

Nas eleições legislativas de 2005, por exemplo, obteve vitória esmagadora (graças ao boicote das oposições) e, paradoxalmente, apesar de defender a democracia participativa em detrimento da democracia representativa, não se preocupou em explicar a pífia participação de apenas 25% do eleitorado neste pleito.

Descobriu-se, também, que CHÁVEZ, através do emprego de máquinas de identificação digital, conseguiu catalogar a orientação político-eleitoral de 12 milhões de eleitores durante o referendo de 2004, criando uma listagem batizada de “Maisanta” com informações que privilegiavam os aliados em detrimento dos adversários em todos os níveis (obtenção de empregos públicos, emissão de passaportes, acesso a auxílios sociais, etc.).

Além de tudo isto, foi obtido um controle quase absoluto do Estado venezuelano pelo governo (formalmente) democrático de CHÁVEZ: o Ministério Público passou a ser encarregado de processar os adversários sob acusação de “traição à pátria”; 80% dos magistrados passaram a ter contratos temporários (muitos de apenas três meses) que não são renovados caso julguem de forma contrária aos interesses governamentais; os nomes de mais de 20.000 trabalhadores da PDVSA, demitidos depois de uma greve contra CHÁVEZ, estão registrados em uma “lista negra”, proibidos de trabalhar em qualquer órgão público ou na iniciativa privada (sob pena de represálias fiscais do governo); empresários que se envolvam em atividades políticas de oposição são submetidos a uma devassa fiscal; entre outras incontáveis e semelhantes iniciativas.

MADURO, seu sucessor a partir de 2013, simplesmente vem se guiando pela mesma cartilha, o que restou de forma ainda mais manifesta com o processo eleitoral de 2024, que o catapultou para um terceiro mandato.

“Na sua monumental ‘The History of Government’, S. E. FINER sintetiza os quatro tipos básicos de entidades políticas (Palácio, Fórum, Igreja e Aristocracia) e estabelece as suas potenciais interações. O Fórum é o sistema fundado na autoridade conferida pelos ‘de baixo’, que deve ser incessantemente renovada. Mas ele vive sob o risco permanente de se converter em Palácio, ou seja, no sistema que concentra a autoridade num soberano individual (imperador, rei, príncipe ou ditador). A transição acontece quando o governante alçado pelo povo consegue se desvencilhar do controle efetivo dos governados, perenizando-se no poder. É esse o mecanismo principal que, atualmente, provoca o declínio global da democracia. (...) O caso clássico é a Venezuela chavista. CHÁVEZ consolidou-se no poder por meio de sucessivas eleições e plebiscitos. No percurso, ao longo dos anos de elevada popularidade, sujeitou juízes e órgãos eleitorais às conveniências do regime ‘bolivariano’. MADURO completou a trajetória, instalando a ditadura em meio ao colapso econômico e social. Contudo, mesmo na etapa final, marcada pela virtual abolição da Assembleia Nacional, apelou ao ‘povo’, produzindo o simulacro de uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente por seus seguidores. ‘Saberá a democracia resistir à democracia?’, indagou SARTORI num de seus últimos livros. (Afinal) o perigo real não está nos populistas, mas na carência de vozes democráticas dispostas a confrontá-los.” (DEMÉTRIO MAGNOLI; O Povo contra a Democracia, O Globo, 24/09/2018, p. 3)

Portanto, o uso da pseudodemocracia para destruir a verdadeira democracia (material) e implantar um regime democrático meramente formalizante ou “de fachada” não é original, como bem salienta DIOGO SCHELP.

ADOLF HITLER era líder de uma bancada parlamentar eleita com 33% dos votos quando foi escolhido chanceler da Alemanha, de forma absolutamente republicana.

Um ano depois, ele acumulou o posto de presidente, deixado vago pela morte do Marechal HINDENBURG, obtendo para isto uma comprovada aprovação dos alemães em plebiscito.

Nos anos seguintes, entretanto, após a chegada ao poder pelas vias democráticas, fechou sindicatos, suprimiu a liberdade de imprensa e gradativamente eliminou os demais partidos, sendo, assim como a Venezuela dos dias atuais, exemplo clássico das frágeis estruturas institucionais e do baixo grau de maturidade política inerente às chamadas democracias formais.

* Reis Friede é Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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