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O ensino da tabuada na escola primária

O ensino da tabuada na escola primária

29/07/2011 Miriam Mota Rodrigues

O primeiro aspecto a ser destacado é o significado da tabuada. O que é uma tabuada? Uma lista de números? Operações? Contas de vezes? Multiplicação? Uma tabela de números?

A tabuada é um tipo especial de tabela, que no ensino primário está associada à memorização de fatos aritméticos e, em especial, dos fatos da multiplicação. É comum a associação do termo tabuada somente à tabela da multiplicação. Esquece-se, porém, de uma diversidade de outras “tabuadas”: adição, subtração, divisão, quadrados perfeitos, potências de 2.

As tábuas de logaritmos e as tábuas trigonométricas também são tabelas, ainda que, usualmente, as chamemos de “tábuas”. Estamos cercados por tabelas e, sem perceber, também por tabuadas. Numa padaria, perto de minha casa, por exemplo, tinha na parede uma tabela que, no fundo, não passava de uma tabuada do “0,35”; trinta e cinco centavos era o preço de cada pãozinho.

Pães - Preço Total

1  R$ 0,35

2  R$ 0,70

3  R$ 1,05

4  R$ 1,40

5   R$ 1,75

Cada vez que alguém pedia uma certa quantidade de pães, o padeiro, quase sempre anotava o valor total em um pedaço de papel sem o auxílio de qualquer recurso material, como o cálculo escrito ou uma calculadora. Tudo indicava que ele sabia alguns valores de cabeça ou, como dizia meu avô, “de cor”. Em geral, nosso padeiro não consultava a tabuada da parede quando os fregueses pediam quantidades como 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 10 ou 12 pãezinhos, pois se tratava dos pedidos mais comuns. Mas se alguém pedia 17 pãezinhos, nosso padeiro, que não tinha a obrigação de saber de cabeça quanto é 17 x 0,35, virava-se para a parede às suas costas e consultava a linha 17 para ver qual era o valor de 17 pãezinhos.

Se o freguês voltasse no dia seguinte e pedisse a mesma quantidade de pães, é provável que nosso padeiro repetisse a consulta. Talvez ele a consultasse novamente na terceira vez, mas, no quarto dia, logo que avistasse o freguês, poderia pensar “Lá vem o cara dos 17 pãezinhos”. Mas desta vez seu procedimento seria diferente: ele contaria e ensacaria os pães e anotaria o valor de R$ 5,95 diretamente no papel, sem precisar consultar a tabela. O que teria ocorrido? Tudo indica que nosso padeiro memorizou o fato numérico da 17ª linha da tabuada do “0,35”. E por que memorizou? Porque necessitou, porque aquela operação esquisita 17 x 0,35 passou a ter significado na sua rotina diária.

Ou alguém acha que ele levou a tabela para decorar em casa? Muito provavelmente ele nunca mais precise consultar aquela tabuada de padaria, nem mesmo se alguém lhe encomendar 170 pães, que pode ser facilmente calculado quando se sabe o preço de 17, a não ser que um dia apareça alguém pedindo 43 pãezinhos. E lá vai nosso padeiro de volta à tabuada do 0,35. Para que servem as tabuadas? Tabelas existem para serem consultadas, não para serem decoradas ou reconstruídas a cada momento. Tabuadas, como qualquer tabela, deveriam ser construídas e ensinadas para serem consultadas e, no âmbito escolar, se as atividades de construção e consulta forem significativas, é grande a probabilidade de a maioria dos alunos as memorizarem naturalmente, sem esforço ou cara feia.

Dessa perspectiva, os fatos aritméticos da multiplicação tendem a ser apreendidos e internalizados pelos alunos, tal como já o fizeram com seus nomes e endereços e telefones de parentes e amigos. Existe diferença entre decorar e memorizar ou significam a mesma coisa? Antes de responder a essa questão pense na seguinte história como metáfora: Dona Lílian foi contratada para ser secretária em uma escola. Dentre suas principais tarefas diárias está a função de telefonista. Durante um dia de trabalho, ela faz cerca de 80 telefonemas para diversos órgãos e pessoas: secretaria de educação, editoras, outras escolas, professores, contador, papelaria. Como funcionária nova, ela provavelmente não sabe de cabeça nenhum dos números telefônicos que terá que discar para fazer as ligações. O que você acha mais sensato?

Ela leva a lista de telefones da empresa para casa e só depois de decorá-los começa a trabalhar para valer ou ela trabalha normalmente consultando a lista de telefones sempre que necessitar fazer uma ligação? É claro que a primeira opção é absurda, improvável e inverossímil no mundo real do trabalho. Também é claro que o hábito e a rotina de ter que fazer telefonemas para um mesmo número contribui para que a funcionária memorize os números mais importantes. Em outras palavras, há memorização quando se recorre com certa frequência e ritmo a fatos e/ou informações em situações significativas que se enfrentam por desejo ou necessidade. É isto o que desejamos para nossos alunos? Que decorem sem assimilar, sem entender? Que decorem hoje o que provavelmente vão esquecer amanhã? Não. Esse não é o objetivo de qualquer educador que se preze, seja ele construtivista ou não. E também não deve ser o desejo de pais, governantes e até mesmo dos alunos.

Miriam Mota Rodrigues* é Coordenadora do Programa Matemática Descomplicada, da Planeta Educação, em Guaratinguetá, São Paulo.

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