O “poeta” Umberto Eco
O “poeta” Umberto Eco
Há dois anos, em 19 de fevereiro de 2016, a Itália perdeu um dos seus maiores pensadores.
Desde então, muito se falou e se escreveu a seu respeito, quase sempre lembrando os maiores sucessos, sobretudo romances que o consagraram, como, por exemplo, O nome da Rosa, um dos poucos best-sellers italianos de repercussão mundial, e A misteriosa chama da Rainha Loana.
No entanto, poucos se referiram à outra faceta do mestre piemontês: a poesia filosófica e a poesia satírico-paródica, presente em volumes como Il scondo Diario Minimo (O segundo Diário Mínimo) e o minúsculo Sator arepo eccetera, publicado em 2006 por uma pequena editora.
No Segundo Diário Mínimo, o jovem Eco (1958) inventa dois pequenos “compêndios” intitulados “Filosofi in libertà” e “Scrittori in libertà”, nos quais recorre aos versos para divertir-se eruditamente com a história da filosofia, dos pré-socráticos a Heidegger, e com o pensamento de alguns grandes escritores como Proust, Kafka e Joyce, estabelecendo um curioso diálogo entre os filósofos elencados em ordem cronológica.
Há ainda improváveis “conversas” entre determinados escritores “filosóficos”, como ocorre no estranhíssimo “diálogo entre Dante e Saussure”, no qual o “sommo poeta” lamenta o “aspérrimo” caminho percorrido pelo linguista para defender a “sincronia estrutural”.
Trata-se de exercícios de poesia despretensiosos, mas densos de erudição e dotados de fino humor, em que o grande pensador, ainda muito jovem e no início da sua brilhante carreira, dá asas à imaginação e concebe curiosas “conversas” entre os maiores pensadores da humanidade.
A título de exemplo, podemos observar como em “Filosofi in libertà” Marx reage inconformado a uma pergunta feita sobre o pensamento de Kant: “Se tu gli chiedi: ´Ma allora, dica,/se Kant disserta sulla ragione/questo per caso dipende mica/s´egli abba fatto già colazione?´/Marx ti responde: ´Dico, le pare?/Chi le autoriza simil chiose?/Questo è marxismo, sì, ma volgare!” (Secondo Diario Minimo, p. 230).
Percebe-se claramente nestes versos que o autor tencionou obter um efeito cômico a partir de dados “sérios”. No contexto do final dos anos 50, em plena Guerra Fria, deve ter parecido provocador imaginar Marx reagindo inconformado a uma observação sobre se a noção de razão em Kant depende de ele ter ou não tomado o café da manhã!
Mas o “Secondo Diario Mínimo” tem outros exemplos fantásticos da verve poética de Umberto Eco que se diverte alterando poemas de Montale, como, por exemplo, quando reescreve a poesia montaliana “Addio fischi nel buio” (“Adeus, assobios na escuridão”). Ao refazer os versos de Montale, ele prefere imaginá-los sem as vogais, em etapas nas quais paulatinamente as vogais são retiradas até descaracterizar completamente o original. Mais uma vez se trata de uma brincadeira, talvez destinada a preencher noites de insônia.
Em Sator arepo eccetera, além da invenção de incríveis anagramas e acrósticos (naturalmente, sempre recheados de referências eruditas), impressionam as divertidas paródias de alguns versos dos cantos I, V e XXXIIII do Inferno, de Dante Alighieri.
O tom altamente trágico destes cantos, sobretudo o V, famoso pela história do amor entre Paolo e Francesca, e o XXXIII, que narra o triste fim do conde Ugolino, trancafiado em uma torre para morrer de fome com os seus filhos, acaba sendo “subvertido” e transformado em uma espécie de festim com alusões claramente sexuais.
O mais incrível é que esta aparente atualização “subvertida” dos versos de um dos maiores poetas da humanidade mantém a “música” de Dante, pois tanto a rima como a métrica são respeitadas. O hendecassílabo do poeta florentino surge adaptado aos nossos tempos vulgares, perdendo, assim, dramaticidade e provocando antes risadas que lágrimas.
Nesta paródia “buffa”, o personagem Dante, viajante vivo que percorre o reino dos mortos, não desmaia de comoção após o triste relato de Francesca, mas põe-se a rir e a pular, cheio de vida: “E poi che poscia l´altro corpo tacque,/l´uno ridea; sì ch´io sghignazzavo/pieno di vita come uom che nacque./E tutto arzillo, a balzi, saltellavo” (Sator arepo eccetera, p. 15. Tradução literal: “E depois que o outro corpo logo se calou/um deles ria, de modo que eu fazia gracejos, /cheio de vida como homem que nasce/E todo lépido, dava pulinhos”).
Umberto Eco foi também poeta, portanto, mas do seu jeito característico, misturando erudição com finíssimo humor, além de certas flechadas disparadas contra as convenções e contra as ideologias e verdades pretensiosamente indissolúveis.
O seu legado, já bastante rico e destinado à eternidade, como todas as obras dos verdadeiros artistas, permite também que seja incluído no rol extenso dos poetas universais, ao menos no que concerne aos poetas satíricos ou com características paródicas.
* Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araarquara.