É… daqui pra frente é só pra trás
É… daqui pra frente é só pra trás
Esta frase, quase sempre dita em tom jocoso, tem sido muito usada nas rodas de conversas e brincadeiras entre nós, que já sopramos uma boa quantidade de velas comemorativas.
É uma boa forma de zombar do tempo, já que não podemos detê-lo e nem vale a pena viver de reclamações. Mas já que a passagem do tempo é inevitável e ocorre de forma universal, vamos vivê-lo com a leveza possível.
As mazelas do envelhecimento são muitas e bastante diversificadas. Já foram tema de uma música que compus quando fizemos vinte e cinco anos de formatura.
Vou deixar de lado aquelas que atacam nosso corpo de cima a baixo, por dentro e por fora. Antes que me esqueça, quero hoje me ater às mazelas vividas em função dos nossos esquecimentos.
Nossa memória, antigamente testada por coisas simples e poucas, vem atualmente sendo colocada em xeque pelo mundaréu de informaçōes, vindas das mais variadas fontes.
Depois da internet e do celular, a avalanche das informações que nos chegam nos deixa com a sensação de que a nossa memória está com um espaço bem menor que o necessário.
E aí começam os problemas... - Meu bem, você viu onde eu deixei meu celular? - Você estava com ele agora há pouco. - Pois é. Agora há pouco é muito tempo pra mim. Liga pra ele, por favor.
Ligo e o celular dela toca a dois metros de distância, em cima de uma cadeira da sala. Noutro dia estou sentado no sofá vendo um jogo quando sinto falta de algo que precisava.
Me lembro que ele deve estar no quarto. Deixo a sala em direção do quarto, resoluto em busca daquilo que eu precisava. Chego no quarto, acendo a luz e então a grande dúvida: o que era mesmo que eu estava buscando? Volto à sala na esperança de sentir novamente a falta do que fora buscar.
Dou um sorriso e retorno confiante ao quarto com aquela certeza de quem sabe o que quer. Até precisar novamente de outra coisa... - Meu bem, corre lá na cozinha que o café está fervendo. Eu esqueci de tirar o café do fogo.
Corro lá e após verificar a situação: - Tá tranquilo. Você esqueceu de acender o fogo! Os médicos dizem que se temos consciência do fato, isso não é problema. Serve de consolo, mas não de solução.
Outra situação que está se tornando corriqueira é encontrar com um amigo que há um tempo não vemos e esquecer o seu nome. Situação que nos causa, no mínimo, um constrangimento.
Que piora quando a pessoa abre os braços e diz o nosso nome, inesquecível para ela. E a gente fica com a sensação de que isso só acontece conosco.
Estes dias rimos muito de uma situação que vivemos, Flavinha e eu. Há alguns meses recebemos uma nova vizinha do nosso apartamento.
A rotina nos prédios hoje faz com que passemos trinta dias sem nos encontrarmos com os nossos vizinhos, mesmo aqueles do mesmo andar. Mas a nova vizinha quebrou essa rotina.
Num sábado pela manhã toca o interfone e a Flávia foi atender. Era a nova vizinha que, num gesto de simpatia e boa vizinhança, levava um bolo feito por ela, ofereceu para a Flávia e se apresentou como a nova vizinha.
Um gesto bacana e que deveria fazer parte da rotina dos novos vizinhos. A Flavinha agradeceu e comentou comigo depois: - Puxa, que simpatia dela. Agora preciso retribuir essa gentileza. Quando for devolver o vasilhame vou fazer um rocambole de cenoura para ela.
Este rocambole é uma das muitas especialidades culinárias da Flavinha. Em geral é muito elogiado por quem o experimenta.
Passados alguns dias, ela comenta: nossa, esqueci do rocambole da Bete (o nome foi fácil de lembrar, pois na família existem duas Betes muito queridas).
Como teria que fazer um rocambole para um encontro de amigos, resolveu fazer um maior para tirar um pedaço para a vizinha. No outro dia pela manhã tocou a campainha e ao invés da Bete, quem atendeu foi a sua filha, cujo nome já esquecemos!
Deixou o rocambole com a filha para que entregasse à mãe. Começou a estranhar que a Bete não devolvia a vasilha do rocambole.
Passou uma semana e nada. Duas semanas e a vasilha com a vizinha ainda. Um mês depois estávamos fazendo uma caminhada e a dois quarteirões de casa encontramos com a Bete que procurava um supermercado.
-Bom dia, dona Bete. - Oi, tudo bem com vocês? - Tudo bem. E aí, gostou do rocambole? Ele arregalou os olhos como se não estivesse entendendo nada. - Olha, deixei o rocambole na sua casa. - Ah, é? - Deixei com a sua filha. A senhora não comeu?
Ela continuou olhando para nós e apenas comentou: - Uai, então eu devo ter comido. A Flavinha e eu rimos e continuamos a caminhada para casa. Apenas comentamos: - É, a coisa tá feia é pra todo mundo.
Quase ninguém escapa! Passados mais uns quinze dias, ainda aguardamos a vasilha do rocambole retornar para nossa casa. E como ela não sabe voltar sozinha...
* Antônio Marcos Ferreira é engenheiro eletricista, aposentado da Cemig e vice-presidente da Fundação Sara.
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