Portal O Debate
Grupo WhatsApp

Leitores em extinção

Leitores em extinção

15/05/2024 Marco Antonio Spinelli

Ontem, finalmente, tive um dia inteiro de atendimento on-line, na minha casa.

Alguém poderia perguntar, aí, do outro lado da tela: “Spinelli, você está um pouco atrasado? Ou está requentando um texto antigo”?

Nem uma coisa nem outra. Antes da Pandemia, o atendimento on-line já era uma realidade. Já tinha clientes em Londres, Califórnia, Portugal. Durante a Pandemia, meu atendimento on-line se expandiu, mas aproveitei a condição de médico para atender presencialmente no meu consultório, que fica numa casinha, o que impediu também o uso de elevadores e o espaço mais restrito de um consultório em um conjunto. Quem topava vir, era álcool gel, máscaras e consulta presencial. Mas o atendimento remoto tornou-se, na marra, uma realidade.

A mescla de atendimento presencial e on-line permitiu ampliar atendimentos em uma cidade em que o deslocamento está ficando cada vez mais difícil, como São Paulo, ou atender pessoas da Grande São Paulo ou do interior. Além de uma pequena clientela em Portugal. O que eu prefiro? A consulta presencial, com certeza. A avaliação clínica é muito mais rica. A tarefa agora é aprimorar a consulta à distância, mas isso não é o assunto desse artigo. O assunto é a mudança da temporalidade que vivemos hoje.

Depois de um dia de atendimento à distância, pude começar mais cedo e terminar mais cedo. Economizei duas horas de deslocamento. Reservei poucas horas para estudar depois. Um livro que está na minha cabeceira há algumas semanas.  Meu tempo interno se expande, o texto entra nessa forma de leitura, saboreando como o autor estrutura suas ideias. Até o celular vibrar, com alguém pedindo receita ou esclarecendo uma dúvida. Respondo (o que já é um erro: interromper uma atividade para responder ao WhatsApp), e dou uma passada na minha Rede Social (só tenho uma). Teclo uns coraçõezinhos de “Gostei” para comentários do último Reels que lançamos. Vejo vídeos pequenos. Pulo para pesquisar algum tema que me chamou a atenção. Pronto. Acabou a temporalidade gerada pela leitura, que eu chamaria de uma leitura gourmet, onde as ideias de encadeiam e são degustadas, pela leitura frenética e o engolir de imagens, ideias, gags e bombardeio de estímulos do “scrolling”, o deslizar desses vídeos, postagens, dancinhas e meninas de biquíni ou caras marombados que vem nessa velocidade estonteante do digital. Pronto. Trocamos a leitura gourmet, onde a leitura vai construindo e sedimentando conceitos, pelo hiperestímulo, onde os conceitos são engolidos diretamente, sem passar pelo julgamento. Como engolir um monte de comida lixo sem mastigar, sem sentir o gosto do que deveria ser alimento.

 Abolimos nosso Córtex Pré Frontal, nossa Insula e nosso Cortex Cingulado Anterior, que filtram, distribuem e categorizam a informação que chega ao nosso Cérebro Racional; e deixamos nosso Cérebro Emocional ou Límbico mais superestimulado, com as consequências que vemos por aí: ansiedade, irritabilidade, desregulação emocional, esgotamento.

Apesar de termos à nossa disposição um conhecimento mais profundo desses mecanismos com os saltos que a Neurociência, a Neurogenômica e a Psiquiatria experimentaram desde o final do século passado, não desenvolvemos ainda um antídoto para essa mudança de nossa temporalidade, que chacoalha e bagunça nossos relógios biológicos e nossa Saúde Mental.

Chegamos agora, nesse texto, a cerca de quinhentas e quarenta palavras. Se os queridos leitores chegaram até esse ponto, parabéns. Se o texto serviu para a vossa reflexão, melhor ainda. Porque, enquanto está lendo no seu computador, por exemplo, seu celular está popando mensagens, alguém está falando ao fundo, talvez tenha música ou uma TV ligada. Tudo tenta te chamar a atenção e tudo parece urgente. Ler devagar, refletir, dialogar e, sobretudo, ouvir o que o outro tem a dizer, virou um luxo e uma capacidade que pode estar entrando em extinção nessa selva de estímulos frenéticos e contínuos.

Espero que o atendimento on-line crie um espaço de escuta das angústias das pessoas e um restabelecimento da capacidade de entender, antes de julgar, o que está sendo dito pela outra pessoa. Talvez esteja na hora de se criar ilhas de uma temporalidade não digital, confiscando celulares antes das aulas, nas reuniões e nas mesas de jantar. As conversas devem ser protegidas, como animais em extinção.

Eu, de minha parte, voltei para meu livro. E foi bom.

Obrigado a você, que chegou até o final desse texto. Espero que tenha degustado a leitura. Mas cuidado. Você é um leitor, ou leitora, em extinção.

* Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.

Para mais informações sobre leitura clique aqui...

Publique seu texto em nosso site que o Google vai te achar!

Entre para o nosso grupo de notícias no WhatsApp

Todos os nossos textos são publicados também no X

Fonte: Vervi Assessoria



O mal-estar da favelização

Ao olharmos a linha histórica das favelas no Brasil, uma série de fatores raciais, econômicos e sociais deve ser analisada.

Autor: Marcelo Barbosa


Teatro de Fantoches

E se alguém te dissesse que tudo aquilo em que você acredita não passa de uma mentira que te gravaram na cabeça? E que o método de gravação é a criação permanente de imagens e de histórias fantásticas?

Autor: Marco Antonio Spinelli


Esquerda ou direita?

O ano de 2020 passou, mas deixou fortes marcas no viver dos seres humanos.

Autor: Benedicto Ismael Camargo Dutra


O investimento público brasileiro e a estruturação social inclusiva

O investimento público desempenha um papel crucial no desenvolvimento de uma nação.

Autor: André Naves


Eleições 2024: o que vem pela frente

Em outubro de 2024, os brasileiros retornarão às urnas, desta vez para eleger prefeito, vice-prefeito e vereadores de seus municípios.

Autor: Wilson Pedroso


Seja um líder que sabe escutar

Uma questão que vejo em muitas empresas e que os líderes não se atentam é sobre a importância de saber escutar seus colaboradores.

Autor: Leonardo Chucrute


Refugiados, ontem e hoje

A palavra “refugiados” vem da palavra fugir.

Autor: Solly Andy Segenreich


A solidão do outro lado do mundo

Quem já morou no exterior sabe que a vida lá fora tem seus desafios.

Autor: João Filipe da Mata


Um lamento pelo empobrecimento da ética política

Os recentes embates, físicos e verbais, entre parlamentares nas dependências da Câmara Federal nos mostram muito sobre o que a política não deve ser.

Autor: Wilson Pedroso


Governar com economia e sem aumentar impostos

Depois de alguns tiros no pé, como as duas Medidas Provisórias que o presidente editou com o objetivo de revogar ou inviabilizar leis aprovadas pelo Congresso Nacional - que foram devolvidas sem tramitação - o governo admite promover o enxugamento de gastos.

Autor: Tenente Dirceu Cardoso Gonçalves


A poderosa natureza

O dinheiro é um vírus que corrompe tudo e quando a pessoa se “infecta”, dificilmente se livra.

Autor: Benedicto Ismael Camargo Dutra


A maior eleição do mundo e o nacionalismo hindu

O ano de 2024 está sendo considerado o superano das eleições pelo mundo. Ao todo, mais de 50 países terão pleitos variados, dentre os quais o Brasil e os Estados Unidos.

Autor: João Alfredo Lopes Nyegray