Grupo WhatsApp

O juiz que escolheu o arbítrio

O juiz que escolheu o arbítrio

03/07/2025 Marcelo Aith

Na periferia de uma cidade do Sul do país, cresceu um jovem chamado Luiz Henrique, um garoto tímido que, desde cedo, nutria o sonho de se tornar juiz.

Inspirado pelos livros de Direito herdados de um professor velho e aposentado, Luiz enxergava na magistratura não apenas um símbolo de autoridade, mas a grande promessa de controlar o caos que percebia na sociedade.

— Um dia, vou sentar na cadeira de juiz, e ninguém mais vai cometer injustiças nesta terra — dizia, com as mãos tremendo de emoção, sempre que superava uma prova difícil na faculdade de Direito.

Ele era um aluno promissor, dedicado às leis, mas, ainda nos primeiros anos da faculdade, sua visão de justiça já apresentava traços perigosos de absolutismo. Vieira, professor de Direito Constitucional, que frequentemente dialogava com ele, tentava alertá-lo:

— Luiz, a justiça não é só punição. É equilíbrio. É ouvir todos os lados.

— Professor, com o devido respeito, muito desequilíbrio ocorre porque o direito de defesa é usado como escudo para criminosos. A solução está no rigor. A lei deve ser implacável.

Sem espaço para dúvidas ou autocrítica, Luiz Henrique avançava em sua trajetória. Passou na prova da OAB com louvor, mas recusou a advocacia, pois detestava a ideia de defender alguém “guilty as hell” (culpado como o inferno).

Para ele, o papel do advogado era uma peça desgastada e dispensável numa engrenagem que deveria servir exclusivamente à punição.

A Toga: Transformação e Obsessão

Luiz Henrique brilhou em todos os concursos públicos que prestou. Aprovado para a magistratura aos 27 anos, fez história como um dos mais jovens juízes de sua geração. No primeiro dia na cadeira, fez a si mesmo uma promessa:

— Para onde o Ministério Público apontar, eu estarei do lado. Juntos, vamos limpar o país. Acabou a era da impunidade.

E foi exatamente o que fez. À frente de uma pequena comarca, aliou-se a promotores locais e policiais federais, formando uma espécie de força-tarefa informal.

Aos poucos, Luiz forjava sua reputação como um verdadeiro “justiceiro” dos tribunais. Para ele, não havia réus que merecessem consideração.

Advogados de defesa tornaram-se figurantes inúteis em seus processos. Teses legais eram descartadas com desprezo, como se cada argumentação fosse um truque barato para proteger delinquentes.

Nas audiências, Luiz demonstrava pouco — ou nenhum — respeito às garantias fundamentais. Negava habeas corpus com frases como:

— Este documento não passa de papel desperdiçado de um país que se cansou de proteger culpados. Aqui, na minha vara, não cabe esconde-esconde jurídico!

Apenas dois anos após sua posse, Luiz Henrique já acumulava acusações de violar os direitos dos réus. Suas sentenças atropelavam princípios constitucionais, como o contraditório e a ampla defesa, sob a justificativa de estar combatendo a corrupção. Para ele, formalidades processuais eram “luxos” que só favoreciam os criminosos.

Começaram a surgir histórias sobre como ele, junto aos promotores, ordenava prisões preventivas indefinidamente, sem justificativa concreta.

Testemunhas eram coagidas, e vazamentos seletivos para a imprensa moldavam a opinião pública antes mesmo dos julgamentos começarem.

Seu comportamento autoritário começava a gerar resultados questionáveis, mas a população o defendia fervorosamente, alimentada por manchetes que o pintavam como herói da moralidade nacional.

A Dissonância do Justiceiro

Luiz Henrique não percebia que havia se tornado uma contradição ambulante. Enquanto se dizia defensor da justiça, sua atuação era cada vez mais marcada por arbitrariedades.

Convencido de que era incorruptível, acreditava ser o único dono da verdade, o verdadeiro salvador de um país corrompido.

Em uma reunião com colegas do Ministério Público, um promotor mais jovem ousou questionar seu autoritarismo:

— Luiz, não acha que estamos indo longe demais em algumas dessas prisões? Nem mesmo houve denúncia formal, e as defesas sequer foram ouvidas.

— Se começarmos a dar voz a advogados e defesa técnica, estamos perdidos. Quem não deve, não teme. Um suspeito não precisa de prazo — precisa de um choque de realidade! Na minha vara, não vou permitir que a corrupção sente à mesa do contraditório.

Sua fala foi recebida com aplausos pelos promotores mais próximos, mas algumas vozes começavam, enfim, a hesitar.
Luiz não cedia. Alimentava-se do poder simbólico da toga.

Tornara-se, aos olhos da opinião pública, a personificação de uma justiça pura. Não havia mais espaço para autocrítica.

Distratava defensores públicos, ignorava argumentos técnicos e limitava perícias que pudessem enfraquecer as acusações que ele próprio endossava.

Num caso emblemático, Luiz condenou um empresário local com base apenas em testemunhos frágeis, ignorando provas robustas apresentadas pela defesa.

O caso ganhou repercussão internacional. Juristas passaram a questionar se Luiz não estaria usando seu cargo para promover uma verdadeira caça às bruxas.

Foi a partir de uma denúncia anônima que o próprio sistema judiciário começou a investigar Luiz Henrique. Promotores e magistrados que haviam dividido operações com ele foram ouvidos, e os relatos eram contundentes: Luiz manipulava interpretações jurídicas, produzia sentenças previamente combinadas com promotores e mantinha réus presos sem justificativa concreta.

As denúncias de abuso de poder logo se acumularam. Num processo histórico, Luiz Henrique foi afastado da função e levado à mesma Justiça que tanto desprezara.

No tribunal, como réu, ouviu da boca do juiz palavras que ele próprio poderia ter proferido anos antes:

— Na ânsia de combater a corrupção, o senhor se esqueceu do dever primeiro de um juiz: garantir que todos, inclusive os culpados, sejam tratados com dignidade e que a verdade seja descoberta dentro dos limites da lei.

Luiz Henrique foi condenado por abuso de autoridade, prevaricação e práticas inconstitucionais. Diante da sentença, declarou:

— Tudo o que fiz foi para proteger o país do mal. Vou dormir em paz, pois sei que meus atos eram necessários.

Luiz Henrique foi encarcerado, mas sua história serviu como um alerta. A linha entre justiça e arbítrio revelou-se mais frágil do que muitos imaginavam. Apesar de seus erros, por muito tempo dezenas de cidadãos ainda o viam como herói.

Entretanto, olhando ao redor de sua cela fria, Luiz percebeu que sua obsessão por um pretenso combate à corrupção lhe custara tudo: sua carreira, sua honra e o sonho de ser digno da toga que um dia vestiu.

No fim, Luiz Henrique não foi vencido pela corrupção que tanto combatia, mas pelo autoritarismo disfarçado de justiça, que corrompeu sua própria alma.

O juiz que almejava distribuir virtude tornou-se o maior antônimo dela. Qualquer semelhança com a realidade não é coincidência — é realidade.

* Marcelo Aith é advogado criminalista.

Para mais informações sobre justiça clique aqui…

Publique seu texto em nosso site que o Google vai te achar!

Entre para o nosso grupo de notícias no WhatsApp

Todos os nossos textos são publicados também no Facebook e no X (antigo Twitter)

Quem somos

Fonte: Ex-Libris Comunicação Integrada



Para onde caminha a humanidade?

O pragmatismo está ampliando a confrontação econômica. Novas formas de produzir e comercializar vão surgindo com mais rigidez e agilidade.

Autor: Benedicto Ismael Camargo Dutra


Reforma Tributária: mudança histórica ou novo capítulo do caos fiscal

A Reforma Tributária entra na fase prática em 2026 com a criação do IBS e da CBS, que passam a incidir com alíquotas reduzidas.

Autor: Eduardo Berbigier


Austeridade fiscal, caminho obrigatório para ordem e progresso

Quando se aproximam as eleições, o brasileiro se pergunta se é possível ter um país melhor em condições de vida para todos os cidadãos. É o que se deseja.

Autor: Samuel Hanan


Impeachment não é monopólio

A decisão de Gilmar Mendes e o estrangulamento institucional.

Autor: Marcelo Aith


Nova lei da prisão preventiva: entre a eficiência processual e a garantia individual

A sanção da Lei 15.272, em 26 de novembro de 2025, representa um marco na evolução do processo penal brasileiro e inaugura uma fase de pragmatismo legislativo na gestão da segregação cautelar.

Autor: Eduardo Maurício


COP 30… Enquanto isso, nas ruas do mundo…

Enquanto chefes de Estado, autoridades, cientistas, organismos multilaterais e ambientalistas globais reuniam-se em Belém do Pará na COP 30, discutindo metas e compromissos climáticos, uma atividade árdua, silenciosa e invisível para muitos seguia seu curso nas ruas, becos e avenidas do Brasil e do mundo.

Autor: Paula Vasone


Reforma administrativa e os impactos na vida do servidor público

A Proposta de Emenda à Constituição da reforma administrativa, elaborada por um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados (PEC 38/25) além de ampla, é bastante complexa.

Autor: Daniella Salomão


A língua não pode ser barreira de comunicação entre o Estado e os cidadãos

Rui Barbosa era conhecido pelo uso erudito da língua culta, no falar e no escrever (certamente, um dos maiores conhecedores da língua portuguesa no Brasil).

Autor: Leonardo Campos de Melo


Você tem um Chip?

Durante muito tempo frequentei o PIC da Pampulha, clube muito bom e onde tinha uma ótima turma de colegas, jogadores de tênis, normalmente praticado aos sábados e domingos, mas também em dois dias da semana.

Autor: Antônio Marcos Ferreira


Dia da Advocacia Criminal: defesa, coragem e ética

Dia 2 de dezembro é celebrado o Dia da Advocacia Criminal, uma data emblemática que, graças à união e à força da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), integra o calendário oficial das unidades federativas do país.

Autor: Sheyner Yàsbeck Asfóra


STF não tem interesse – nem legitimidade – em descriminalizar aborto

A temática relativa ao aborto e as possibilidades de ampliação do lapso temporal para a aplicação da exclusão de ilicitude da prática efervesceram o cenário político brasileiro no último mês.

Autor: Lia Noleto de Queiroz


O imposto do crime: reflexões liberais sobre a tributação paralela nas favelas brasileiras

Em muitas comunidades brasileiras, especialmente nas grandes cidades, traficantes e milicianos impõem o que chamam de “impostos” – cobranças sobre comerciantes, moradores e até serviços públicos, como transporte alternativo e distribuição de gás.

Autor: Isaías Fonseca