Grupo WhatsApp

O santo de fuzil na mão

O santo de fuzil na mão

02/06/2025 André Burger

Pepe Mujica morreu. Com ele, nasce um mito – não o da austeridade, que já era parte do folclore progressista latino-americano, mas o da absolvição retroativa de crimes sob a égide de boas intenções.

Os obituários exaltam seu casaco puído, sua casa modesta e seu fusca descascado. O que não descasca, curiosamente, é a memória seletiva: Mujica, o presidente “mais pobre do mundo”, foi também um dos líderes do grupo terrorista Tupamaros, responsável por sequestros, assassinatos, assaltos a bancos e roubos de empresas.

Para os que hoje o tratam como uma espécie de São Francisco do socialismo rural, vale recordar que os Tupamaros não eram um grupo de escoteiros politizados. Eram guerrilheiros.

Em sua tentativa de instalar no Uruguai um regime socialista revolucionário, adotaram a violência como método e a ruptura institucional como objetivo.

Mujica participou de diversas ações armadas, foi preso quatro vezes, fugiu duas e acumulou 14 anos de cadeia, boa parte deles em condições duríssimas — algo que seus admiradores mencionam com reverência, mas jamais com exame crítico das causas que o levaram até ali.

O curioso — ou revelador — é que Mujica jamais se disse arrependido. Em entrevistas, relativizou os atos de violência, atribuindo-os a um “contexto histórico” que, ao que parece, absolve qualquer delito desde que a utopia sonhada seja suficientemente lírica.

Matava-se por uma causa, e isso, aos olhos da intelligentsia latino-americana, parece tornar tudo legítimo. O mesmo raciocínio não se aplica, é claro, aos militares ou à direita armada de qualquer natureza. O monopólio da violência redentora é da esquerda.

Em El Pepe, una vida suprema (2018), documentário dirigido por Emir Kusturica, Mujica chega a narrar com certo brilho nos olhos a sensação de entrar armado em um banco com um revólver .45.

Fala disso não como trauma ou erro de juventude, mas quase como um rito de passagem. O velho ex-guerrilheiro não demonstra remorso, apenas nostalgia – e isso, por alguma razão inexplicável, virou charme.

Não surpreenderia que Mujica siga, agora postumamente, a trajetória simbólica de Ernesto Che Guevara — outro guerrilheiro que também matou em nome do bem e, por isso, virou estampa de camiseta.

Ambos compartilham o perfil idealizado do “rebelde com causa” e, mais importante, da indulgência histórica. Che foi um executor frio e confesso. Mujica, um operador armado que nunca pediu perdão.

Mas isso pouco importa quando o que conta é a narrativa, não os fatos. As esquerdas latino-americanas são exímias em amputar a memória: lembram-se das flores, esquecem os tiros.

Durante sua presidência (2010–2015), Mujica promoveu pautas progressistas — legalização da maconha, casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto — que lhe renderam aplausos internacionais.

O que poucos observam é que seu legado econômico é medíocre. A dependência do Estado cresceu, o setor público incha até hoje com o peso das promessas fáceis, e o Uruguai continua com um dos maiores níveis de gastos públicos per capita da região.

Mas isso não cabe nos necrológios de louvor. Afinal, que importância tem o desempenho fiscal diante de um presidente que anda de chinelos?

Há algo profundamente infantil na forma como parte da opinião pública e da mídia escolhe seus heróis. Mujica encarna a fantasia do revolucionário transformado em sábio: alguém que desceu da montanha (ou da cela) com respostas para a vida em sociedade.

Que ele tenha feito isso sem jamais condenar os métodos violentos de sua juventude é, para muitos, apenas um detalhe — como se a ética do homem público pudesse prescindir de coerência moral.

Não bastasse isso, Mujica manteve, até o fim da vida, relações calorosas com ditadores do continente. Foi amigo pessoal de Fidel Castro, a quem jamais criticou pelas décadas de repressão em Cuba.

Tratou Hugo Chávez com reverência, mesmo diante da evidente ruína institucional da Venezuela. E saudava Nicolás Maduro com benevolência, enquanto a democracia naquele país era triturada entre fraudes eleitorais e censura.

Para um homem que se dizia democrata, a escolha de amigos é reveladora. A liberdade de expressão que usufruía no Uruguai parecia não valer para os povos que sofriam sob os regimes de seus camaradas ideológicos.

No Brasil, alguns compararam Mujica a Ulysses Guimarães. Ofensa ao velho Ulysses, que enfrentou uma ditadura sem lançar mão de um revólver. Outros o trataram como modelo de humildade republicana.

Mas há diferença entre humildade e populismo de vitrine. Mujica fez de sua modéstia um espetáculo. Sua aura de simplicidade servia, paradoxalmente, para encobrir sua complexa rede de contradições ideológicas e silenciosas cumplicidades históricas.

Nem mesmo a tão propalada integridade de Mujica sobrevive a uma análise rigorosa. Em 2016, uma comissão parlamentar investigou contratos do governo uruguaio com a empreiteira brasileira OAS, envolvida em diversos escândalos da Lava Jato.

A obra de uma usina de regaseificação contratada por seu governo terminou em prejuízo milionário, e documentos brasileiros indicavam pagamento de propina.

Soma-se a isso o colapso financeiro da estatal ANCAP, que, sob sua administração, gerou perdas bilionárias e exigiu capitalização de emergência pelo Parlamento.

As investigações não resultaram em condenação direta, mas corroeram a narrativa de pureza administrativa. Sua imagem ética, construída com frases de efeito e gestos teatrais, começou a ruir sob o peso das planilhas.

José Mujica não foi um monge — foi um militante que trocou o fuzil pela retórica, sem nunca ter abandonado a lógica de que os fins justificam os meios. Sua morte merece reflexão, não idolatria.

Se quisermos honrar de fato a democracia, talvez devêssemos começar por deixar de romantizar aqueles que tentaram destruí-la à bala — mesmo que, no fim da vida, tenham aprendido a esquecer o próprio lado sombrio.

* André Burger é economista e conselheiro superior do Instituto Liberal.

Para mais informações sobre Mujica clique aqui…

Publique seu texto em nosso site que o Google vai te achar!

Entre para o nosso grupo de notícias no WhatsApp

Todos os nossos textos são publicados também no Facebook e no X (antigo Twitter)

Quem somos

Fonte: Instituto Liberal



Para onde caminha a humanidade?

O pragmatismo está ampliando a confrontação econômica. Novas formas de produzir e comercializar vão surgindo com mais rigidez e agilidade.

Autor: Benedicto Ismael Camargo Dutra


Reforma Tributária: mudança histórica ou novo capítulo do caos fiscal

A Reforma Tributária entra na fase prática em 2026 com a criação do IBS e da CBS, que passam a incidir com alíquotas reduzidas.

Autor: Eduardo Berbigier


Austeridade fiscal, caminho obrigatório para ordem e progresso

Quando se aproximam as eleições, o brasileiro se pergunta se é possível ter um país melhor em condições de vida para todos os cidadãos. É o que se deseja.

Autor: Samuel Hanan


Impeachment não é monopólio

A decisão de Gilmar Mendes e o estrangulamento institucional.

Autor: Marcelo Aith


Nova lei da prisão preventiva: entre a eficiência processual e a garantia individual

A sanção da Lei 15.272, em 26 de novembro de 2025, representa um marco na evolução do processo penal brasileiro e inaugura uma fase de pragmatismo legislativo na gestão da segregação cautelar.

Autor: Eduardo Maurício


COP 30… Enquanto isso, nas ruas do mundo…

Enquanto chefes de Estado, autoridades, cientistas, organismos multilaterais e ambientalistas globais reuniam-se em Belém do Pará na COP 30, discutindo metas e compromissos climáticos, uma atividade árdua, silenciosa e invisível para muitos seguia seu curso nas ruas, becos e avenidas do Brasil e do mundo.

Autor: Paula Vasone


Reforma administrativa e os impactos na vida do servidor público

A Proposta de Emenda à Constituição da reforma administrativa, elaborada por um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados (PEC 38/25) além de ampla, é bastante complexa.

Autor: Daniella Salomão


A língua não pode ser barreira de comunicação entre o Estado e os cidadãos

Rui Barbosa era conhecido pelo uso erudito da língua culta, no falar e no escrever (certamente, um dos maiores conhecedores da língua portuguesa no Brasil).

Autor: Leonardo Campos de Melo


Você tem um Chip?

Durante muito tempo frequentei o PIC da Pampulha, clube muito bom e onde tinha uma ótima turma de colegas, jogadores de tênis, normalmente praticado aos sábados e domingos, mas também em dois dias da semana.

Autor: Antônio Marcos Ferreira


Dia da Advocacia Criminal: defesa, coragem e ética

Dia 2 de dezembro é celebrado o Dia da Advocacia Criminal, uma data emblemática que, graças à união e à força da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), integra o calendário oficial das unidades federativas do país.

Autor: Sheyner Yàsbeck Asfóra


STF não tem interesse – nem legitimidade – em descriminalizar aborto

A temática relativa ao aborto e as possibilidades de ampliação do lapso temporal para a aplicação da exclusão de ilicitude da prática efervesceram o cenário político brasileiro no último mês.

Autor: Lia Noleto de Queiroz


O imposto do crime: reflexões liberais sobre a tributação paralela nas favelas brasileiras

Em muitas comunidades brasileiras, especialmente nas grandes cidades, traficantes e milicianos impõem o que chamam de “impostos” – cobranças sobre comerciantes, moradores e até serviços públicos, como transporte alternativo e distribuição de gás.

Autor: Isaías Fonseca