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A inadequação da mediação obrigatória pré-judicial

A inadequação da mediação obrigatória pré-judicial

18/06/2024 Suzana Cremasco

Nos últimos anos, a sobrecarga do sistema judiciário brasileiro tem provocado o debate acerca da obrigatoriedade da tentativa de solução extrajudicial de conflitos antes do ajuizamento de ações judiciais, como uma forma de comprovar o interesse de agir.

A questão é objeto do Tema n.º 91 em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Tribunal de Justiça de Minas Gerais e foi objeto de audiência pública realizada no último dia 23 de maio, conduzida pelo relator, Des. José Marcos Rodrigues Vieira.

Embora a medida pareça, à primeira vista, adequada (e eficaz) para diminuir o número de processos no Poder Judiciário e, sobretudo, um caminho para promover a cultura da paz, sua imposição obrigatória revela-se inadequada sob a perspectiva técnica e contraproducente sob a ótica prática.

Primeiramente, é essencial compreender os contornos e as funções do interesse de agir no processo civil brasileiro.

O interesse de agir é um dos requisitos processuais indispensáveis para a admissibilidade da ação judicial, ao lado da legitimidade das partes.

Ele vem previsto no art. 17 do Código de Processo Civil e se refere à necessidade e à utilidade da intervenção judicial pretendida.

Ou seja, na sua petição inicial, a parte deve demonstrar, prima facie, que a demanda judicial é necessária para a proteção de seu direito e que a decisão do juiz lhe trará algum benefício concreto.

Embora a obrigatoriedade da tentativa de solução extrajudicial antes do ajuizamento não contrarie o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, à luz da consolidação entre nós da possibilidade de alcance do acesso à justiça por múltiplas portas (judicial, arbitral, mediadora, etc.), isso deve ser interpretado como uma ampliação das opções de acesso à solução do conflito e, jamais, como uma limitação.

Além disso, o Código de Processo Civil, em seu artigo 3º, §§ 1º e 2º, impõe aos juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público o dever de promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

Isso reflete uma orientação moderna de que a composição amigável deve ser buscada ao longo de todo o processo, e não apenas antes de seu início, como um obstáculo à sua utilização.

Nesse sentido, a solução consensual deve ser incentivada nas várias fases do conflito (e do processo), podendo ser alcançada a qualquer momento, conforme a conveniência e a vontade das partes.

A conveniência e a vontade das partes, aliás, são o principal motivo pelo qual não podemos exigir que as partes busquem, obrigatoriamente, solucionar seus conflitos pela via extrajudicial antes do ajuizamento de ações judiciais.

Isso porque a imposição do uso de vias extrajudiciais viola algo que é essencial ao uso de qualquer desses caminhos que é a consensualidade, a vontade de ambas as partes envolvidas no conflito com vistas a buscar aquela solução.

Logo, extinguir um processo judicial por ausência de interesse de agir decorrente da falta de tentativa de solução extrajudicial é algo que ignora por completo a natureza voluntária e cooperativa desses métodos e a forma como estão estruturados e positivados entre nós.

Outro ponto que nos parece crítico é a própria natureza dos conflitos. Nem todos os casos são adequados para a solução extrajudicial.

Questões complexas, que envolvem direitos indisponíveis, ou aquelas em que há um grande desequilíbrio de poder entre as partes, por exemplo, muitas vezes, requerem a intervenção judicial para garantir um resultado adequado. Exigir uma tentativa de solução extrajudicial em tais casos pode levar a soluções impróprios e, sobretudo, injustos.

Especificamente no tocante a casos envolvendo relações de consumo (e, por conseguinte, instituições financeiras, empresas de telefonia, seguradoras, operadoras de planos de saúde entre outras integrantes do rol de "grandes litigantes" do país) a imposição da tentativa obrigatória de solução extrajudicial antes do ajuizamento de ações pode resultar em verdadeira negativa de um direito fundamental.

Consumidores, muitas vezes, não dispõem de recursos, conhecimento ou acesso adequado para buscar soluções extrajudiciais de forma eficiente.

Sem uma estrutura adequada e sem o devido suporte, a obrigatoriedade pode se transformar em um obstáculo ao alcance de uma prestação jurisdicional adequada, prejudicando os mais vulneráveis.

Na verdade, ao invés de se pretender a obrigatoriedade do uso da via extrajudicial, a solução passa por incentivos e aprimoramentos.

É crucial investir na formação de profissionais cada vez mais qualificados, conscientes e aptos a utilizar esses caminhos, na criação de estruturas verdadeiramente adequadas (e passíveis de auditoria e fiscalização) e no fomento da cultura da solução consensual de conflitos.

Campanhas de conscientização e programas de incentivo podem estimular as partes a optarem voluntariamente por esses métodos, sempre com a garantia de que, se necessário, o Poder Judiciário estará disponível para assegurar a justiça.

A tentativa de solução extrajudicial de conflitos é um instrumento valioso e deve ser, sempre, estimulada. No entanto, sua imposição como requisito para o ajuizamento de processos judiciais é uma medida inadequada e indesejável.

A verdadeira solução para a eficiência do sistema de justiça passa por incentivos, investimentos e pela garantia do acesso ao Poder Judiciário, respeitando a diversidade, a complexidade e as particularidades de cada conflito existente.

* Suzana Cremasco é Doutora em Direito pela UFMG, professora de Processo Civil do IBMEC e advogada de solução de disputas do escritório Suzana Cremasco Advocacia.

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